quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

"E se...? Entre a função ressocializadora da pena e a autonomia do indivíduo criminoso"


Reportagem G1.




Por Tatiana Teixeira

Semana passada, uma jovem, de 20 anos de idade, afirmou que “queria a vida do crime”, mas como sua mãe não aceitou, fugiu de sua casa no Piauí e só foi encontrada, cinco anos depois, nas ruas de Salvador, envolvida com drogas. Outra jovem, de mesma idade, foi detida por suspeita de furto e desrespeito à ordem pública, tendo iniciado sua “vida do crime” ao se envolver com grupos que faziam baderna já na escola; acabou criando um grupo na internet para fazer coisas erradas. Ambas exerceram o seu direito de autonomia e decidiram entrar no mundo do crime, sendo cerceadas do mesmo, ao serem detidas; no entanto, ofenderam os direitos fundamentais e sociais da coletividade. Após serem apreendidas, arrependeram-se de suas escolhas e decidiram sair da “vida do crime”, mas serão punidas.  

Há uma intensa discussão sobre a relação entre os direitos fundamentais e os direitos privados, e ainda sobre a aplicação dos primeiros nas relações entre particulares. É consenso que os direitos fundamentais geram efeitos nas relações verticais (entre Estado e particular), mas quando se trata de produzir efeitos nas relações horizontais (entre particulares ou entre particular e Estado, estando este despido da sua supremacia de poder) faz-se necessário que algumas características dos mesmos, como a irrenunciabilidade e a inegociabilidade, sejam revistas.

Segundo SILVA (2005, p. 51), só é possível pensar na restrição dos direitos fundamentais a partir da autonomia da vontade.  Esta é conceituada como o princípio segundo o qual “a vontade dos contratantes... é soberana e produz efeitos legais, quando a pessoa é capaz, não contraria o direito expresso, o interesse coletivo nem a ordem pública” (Silva, 2012, p.131). Cabe então ao particular a possibilidade de renunciar aos seus direitos fundamentais? Acredita-se que não! Muitos autores, como SILVA (2005, p. 61-65) afirmam que há apenas a possibilidade de renunciar ao exercício de um direito, em uma relação específica; os efeitos dessa renúncia valem apenas para uma situação determinada.

Sendo assim, ao discutirmos sobre alguns casos no nosso grupo de estudos sobre Direito Penal, surgiu um debate sobre a possibilidade de uma pessoa que comete um delito não se arrepender do que fez e não querer ser reinserida na sociedade, negando-se a celebrar o contrato social que permitiu o surgimento das sociedades, já descrito por Thomas Hobbes (Dallari, 2013). Esse contrato hipotético é celebrado entre os homens em busca de segurança e paz, a partir da renúncia ao seu direito individual para satisfazer a coletividade. Ao se negar a cumprir com esse contrato, o indivíduo deveria cumprir uma pena ou até ser banido da sociedade?

A função da pena é discutida por diversas teorias, sendo as principais: a absoluta, as relativas e as ecléticas. Para as primeiras, a pena é vista como uma retribuição ao mal causado à sociedade através do delito, possibilitando uma expiação do criminoso. As teorias relativas veem a pena como um meio através do qual é possível a prevenção de futuros delitos; tal finalidade se divide em geral positiva e negativa (incidindo sobre todos os membros da coletividade) e especial também negativa e positiva (voltada apenas para o delinquente). As teorias ecléticas acreditam que a pena deve ser tanto retributiva quanto preventiva (Bitencourt, 2014; Cirino, 2007; Zaffaroni & Pierangeli, 2004).

A teoria (relativa) de prevenção especial positiva é dirigida à reeducação do delinquente, enquanto que a negativa busca a neutralização deste. Na positiva, a pena é dirigida ao próprio criminoso, incidindo no desenvolvimento da sua personalidade, com a finalidade de ressocializá-lo e evitar uma nova transgressão. A pena deveria ser aplicada em defesa da sociedade, já que o delito gera um dano social. Essa teoria no entanto é criticada porque as prisões não possuem condições de reinserir o criminoso na sociedade, gerando uma falta de credibilidade para os ideais da teoria; há uma grande quantidade de reincidências que comprovam a ineficiência do sistema penal (Bitencourt, 2014; Zaffaroni & Pierangeli, 2004). Além disso, gera uma maior segregação dos presos, por isolá-los da sociedade, acabando por desumanizá-los, em decorrência das condições sub-humanas a que são submetidos nas penitenciárias. 

Para ZAFFARONI e PIERANGELI (2004), a pena não cumpre nem a função de prevenção e nem a de retribuição, mas deve continuar sendo aplicada, por não se saber ainda o que fazer com o criminoso; no entanto, o Direito Penal deve ter o núcleo de tutela reduzido. Afirma ainda que o sistema penal seria uma forma de manutenção da estrutura desigual de poder social, transmitindo uma sensação de tranquilidade para os marginalizados, ou seja, desempenharia uma função apenas simbólica. Para Cirino (2007), a extinção da pena e do Direito Penal trata-se de um ideal filosófico que deve ser perseguido para um futuro ainda distante.

Sendo assim, e se as jovens não tivessem sido apreendidas e se arrependido? E se elas não quisessem se ressocializar? A pena então não estaria cumprindo a sua função de ressocialização e estaria voltando a desempenhar a função de vingança, de retribuição. Dessa forma, seria mais prudente que a pena não fosse aplicada? Para Roxin (1997, p. 95-99), a ressocialização só é possível se houver uma cooperação do condenado, sem imposição de forma coativa; quando ele não colabora, a pena deve ser imposta mesmo assim, para que cumpra sua finalidade social (teoria da prevenção geral). 

Dessa forma, nos casos discutidos, se as jovens não tivessem interesse em se reinserir na sociedade, deveriam ser penalizadas com a função de causar um temor social, desestimulando a criminalidade e prevenindo futuros delitos, assim como pela finalidade de garantir a estabilidade e proteção do sistema social e normativo; para as jovens, a pena funcionaria como uma forma de neutralização das mesmas. Caso quisessem se ressocializar, não conseguiriam, pois nosso sistema penitenciário acaba por isolar o indivíduo, separando-o da sociedade, muito mais que integrando-o; logo, isso justificaria uma revisão sobre os tipos de pena e a forma de aplicação da mesma, que deveriam ser adequados à sua finalidade.

Vale ainda pensar, e se a moda de querer ser “bandido” pegar? O Direito Penal precisa estar preparado, avaliando os casos concretos, e se reestruturar para lidar com essas diversidades, pois mudanças constantes do sistema penal podem implicar numa desestabilização do mesmo e em uma sensação de insegurança para a sociedade.   

     
Referências:
Bitencourt, Cezar. Tratado de Direito Penal: parte geral 1. 20ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 130-162.
Dallari, Dalmo. Elementos de Teoria Geral do Estado. 32ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 21-30.
Roxin, Claus. Derecho Penal: fundamentos: la estructura de la teoria del delito. 2ª ed. Madrid: Editora Civitas, 1997, p. 78-110. 
Santos, Cirino. Direito Penal: parte geral. 2ª ed. Curitiba: ICPC, 2007, p. 695-709.
Silva, Eduardo. Direitos Fundamentais e autonomia privada. Athenas. Minas Gerais: FDCL, vol. I, n. 1, 2012.
Silva, Virgílio. A constitucionalização do direito: os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Malheiros Editores ltda., 2005, -. 50-65. 
Zaffaroni, E. & Pierangeli, J. Manual de Direito Penal Brasileiro: parte geral. 5ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 76-81 e 116-122.

2 comentários:

  1. Texto super interessante e com um olhar bastante crítico e inquietante acerca de um tema de grande relevância nos dias de hoje! Parabéns!

    Viviane.

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  2. O tema abordado é de interesse geral, não estando limitado apenas aos estudantes e operadores do Direito. Trata-se, pois, de interessante reflexão sobre o limite dos direitos individuais face à coletividade, bem como quanto ao sentido da pena e sua efetividade. Parabéns!

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