sexta-feira, 4 de abril de 2014

Maconha é substância ilícita, mas sua criminalização é inconstitucional.





Por Camila Gama

A discussão acerca da maconha não é nova, porém com a superveniência de um precedente inédito, a discussão volta à tona sob nova ótica. Estamos nos referindo ao caso de um homem que foi preso em flagrante por traficar 52 trouxas de maconha e foi absolvido pelo juiz Frederico Ernesto Cardoso Maciel, de acordo com o seu entendimento de que a Lei que proíbe a substância, da forma que está, é inconstitucional (Processo nº 2013.01.1.076604-6, Vara: 604 – Quarta Vara de Entorpecentes do Distrito Federal).

Um dos pontos alegados pelo juiz é que a Portaria deveria conter a justificativa de incluir o THC (substância encontrada na maconha) na listagem, bem como justificar as outras substâncias taxadas neste rol.

Vivemos em um país que tem um ordenamento constitucional, o que significa que a Constituição Federal é o fundamento de todo o sistema jurídico brasileiro, sendo que o que está de acordo com a Carta Magna permanece no sistema e o que não está de acordo é inconstitucional e, portanto, não pode ser aplicado.

Pontuado isso, podemos dizer que a Lei 11.343/06 que criminaliza a maconha, complementada pela portaria 344/98, se optarmos pelo enten­dimento do citado juiz, não deve ser aplicada, de acordo com os seguintes fundamentos:

Há, no nosso ordenamento, o princípio da legalidade, que ganha uma conotação especial em Direito Penal, estabelecendo que ninguém será punido sem que haja uma lei prévia (nullum crimen nulla poena sine praevia lege) em sentido estrito, ou seja, não é qualquer norma levada em consideração aqui, apenas a lei em sentido estrito: discutida nas casas legislativas pelos ditos representantes da população e sancionado pelo Presidente da República; Medida Provisória, editada pelo presidente, por exemplo, não pode versar sobre matéria penal, nem em benefício do réu (novatio in mellius), nas palavras de Paulo Queiroz¹:

Que a atuação do Estado seja orientada por regras jurídicas que expresse, a vontade popular é condição de legitimação democráticapor meio do poder competente, o Poder Legislativo. E particularmente no âmbito jurídico-penal, em que se materializam as mais sensíveis restrições à liberdade, com maior razão impõe-se o respeito ao princípio da legalidade.
 
A Lei de Drogas, entretanto, a Lei 11.343, de 2006, apenas proíbe as drogas, seu tráfico, etc. Porém, não esclarece o que vem a ser “droga” e, é imprescindível ter a definição exata do que é droga para a aplicação desta Lei, sob pena de ferir o princípio da taxatividade, um dos consectários lógicos do princípio da legalidade, que proíbe que a lei penal apresente descrição imprecisa, devendo esta ser taxativa quanto ao que se quer proibir, sem deixar dúvidas, para evitar interpretações arbitrárias.

O que é considerado droga, porém, está elencado na Portaria 344/98, do Ministério da Saúde, atualizada anualmente ou sempre que houver necessidade. O Ministério da Saúde, entretanto, é órgão do Poder Executivo, que não tem competência alguma para legislar, principalmente sobre matéria penal. E esta única portaria criminaliza substâncias, e, por conseguinte, condutas e pessoas também são criminalizadas.

Essas normas penais que criminalizam condutas e que não trazem todos os elementos necessários para a sua aplicação são chamadas de “normas penais em branco”. Estas, por sua vez, são divididas em “normas penais em branco homogêneas” e “normas penais em branco heterogêneas”. As homogêneas tem o núcleo incriminador na norma penal e vão buscar seu complemento em normas de mesma hierarquia, como por exemplo, o Código Civil. Já as heterogêneas, vão buscar seu complemento em normas de hierarquia inferior, como uma portaria, que é o caso que estamos tratando aqui.

O fato de a referida portaria não trazer a justificativa é outro ponto relevante a ser tratado, pois é um compromisso com a democracia a justificativa, por meio da demonstração dos estudos que culminaram em tais conclusões, já que não nos facultaram participarmos do debate acerca da criminalização ou não daquelas substâncias e, o pior é que sequer nos permitem ter acesso aos critérios de classificação do que é considerado droga.
   Para Nereu José Giacomolli:

Carecemos de informação, não só do bem ou do mal das substâncias ilícitas, mas de tudo o que ingerimos, do que utilizamos e vestimos. Mas no Brasil, há décadas que o governo federal não faz mais campanhas de esclarecimento sobre o uso de drogas. Trabalha-se na repressão e não na prevenção e não como o conhecimento e esclarecimento”².

Não sabemos, portanto, quais os motivos (ou interesses) que levam à criminalização de certa substância, que vem sendo feita de modo arbitrário, pelo Poder Executivo.

Para Salo de Carvalho:

A partir a década de setenta, com o incremento e a popularização de várias substâncias entorpecentes, o modelo político-criminal de controle passou da órbita do discurso médico-sanitário e jurídico ao discurso jurídico-político.
[...]
É indubitável que a estrutura político-jurídica cambia, adequando-se periodicamente à conjuntura política internacional. Todavia, Entendemos que os três vértices construtores do modelo político-criminal nacional (MLO [“Movimentos de Lei e Ordem”], Defesa Social, e Segurança Nacional), permanecem inalterados desde a década de setenta, visto que atuam na sua conformação ideológica (positiva ou negativa) propiciando fragmentação maniqueísta na avaliação da realidade social.

Algumas substâncias não criminalizadas, são mais prejudiciais em termos de saúde pública e “segurança nacional” do que certas substâncias elencadas como ilícitas, levando-nos, consequentemente, ao raciocínio de que realmente as que são criminalizadas, o são mais por interesses políticos e ideológicos que por conta de uma base científica sólida.


É, ao nosso ver, um problema realmente de inconstitucionalidade que acompanha a criminalização da maconha (e das outras drogas também), de modo que manter essa proibição da forma que está, com o seu complemento em uma portaria, e aplicá-la, é uma ofensa a Constituição Federal e a todo o nosso sistema constitucional.

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Referências Bibliográficas 

1.    Queiroz, Paulo. Curso de Direito Penal – Parte Geral – Volume 1, 8ª Edição, 2012, Editora JusPodivm.
2.    Giacomolli, Nereu José. A análise crítica da problemática das drogas e a Lei 11.343/2006, em: Revista Brasileira de Ciências Criminais, Ano 16 n. 71 março-abril de 2008.


3.    Carvalho, Salo de. A atual política brasileira de drogas: os efeitos do processo eleitoral de 1998, em: Revista Brasileira de Ciências Criminais, Ano 9 n. 34 abril-junho de 2001.

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