Por Amanda Lucas* e Kíssia Gonzaga**
"Se eu te vejo sem roupa, me sinto fera solta"
("Mar de Doçura" - Aviões do Forró)
A pesquisa “Tolerância social à violência contra as
mulheres” tem gerado grandes polêmicas e não poderíamos deixar de nos
manifestar, apresentando uma análise a partir de olhares do Direito Penal.
Primeiro, no dia 27 de março de 2014, o IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada) apontou que 65% dos entrevistados concordavam que mulheres que usam
roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas. No dia 04 de abril, o mesmo Instituto
apresentou uma errata, apontando que este percentual, na verdade, correspondia
ao percentual de 26%. No entanto, uma semana fora tempo suficiente para gerar
uma grande repercussão, impulsionando manifestações diversas em redes sociais, como
o Facebook e Instagram, com a frase chave “#NãoMereçoSerEstuprada” (marca de tal
movimento) - objeto de estudo de nosso post anterior (http://extramurosfbd.blogspot.com.br/2014/04/estupro-de-quem-e-culpa.html)
A nossa defesa é no sentido do afastamento do princípio
da autorresponsabilidade da vítima, segundo o qual os resultados danos os que decorrem da
livre e inteira responsabilidade de alguém só podem ser imputados a este e não àquele
que o tenha inteiramente motivado, o que significa dizer que a vítima deve se
precaver e se comportar de modo a evitar resultados danosos aos seus bens
jurídicos. Caso negue esta premissa, estará provocando a atipicidade do
comportamento do “ofensor”, excluindo-se do âmbito da tutela estatal. Este é um
princípio trazido pela vitimodogmática, um modo de interpretação penal que
Bernd Schünemann traz como sua criação, no qual objetiva-se eliminar do âmbito
da penalização situações em que a vítima, com a sua conduta, não precisa ou não
merece a proteção jurídico penal. A autocolocação em perigo consentida seria, aplicando-se
referido princípio, argumento suficiente para que se responsabilize a mulher
que veste roupas que mostrem seu corpo pela conduta de seu violentador? É
correto a mulher ser julgada pela roupa que veste?[1]
(...) aquela orientação sistemática
que se dedica a analisar as incidências da vitimologia no âmbito da teoria do
delito e nos tipos penais. A vitimodogmática toma como ponto de partida o feito
de que algumas vítimas contribuem dolosa ou culposamente a sua própria
vitimização, o que pode influir na responsabilidade criminal do agressor, inclusive
bani-la.[2]
Mas
quando se observa a autocolocação em perigo? "Haverá autocolocação sob perigo sempre que a vítima, consciente ou
inconsciente, participe, com sua própria conduta, na realização do resultado
juridicamente protegido". (W. FRISH, Tipo Penal e Imputación
Objetiva, Colex, Madrid, 1995). Ou seja, a autocolocação em perigo se configura
quando a vítima age de tal modo a criar um risco ou se expor a um risco já
existente. Discute-se então, o uso de determinados tipos de roupas podem
corresponder a um comportamento de autocolocação em risco por parte da vítima?
A
imputação objetiva determina que se poderia responsabilizar alguém penalmente
tão somente quando o sujeito criar um risco não permitido pelo ordenamento. Para
Claus Roxin, um dos principais defensores da teoria da imputação objetiva, o
risco que poderia ter sido criado pela optativa da vestimenta da vítima não
seria uma forma de excludente de tipicidade da conduta do agente ofensor, pois
seria o “risco criado” uma conduta juridicamente permitida, no máximo imoral. A
mera imoralidade não torna a conduta arriscada punível.[3]
Nesta linha de raciocínio, a “autocolocação” em perigo em tais circunstâncias,
conforme tratada pela pesquisa do IPEA, não legitimaria o afastamento da
responsabilidade do ofensor. E seria a escolha de um modelo mais desnudo do que
o convencional de fato uma forma de autocolocação em perigo?
"Abre a camisa é pra correr perigo"
("Perigo" - Ira!)
Bernd
Schünemann, com sua teoria interpretativa, nos força a colocar a vítima que se
autocoloca em perigo como coautora do delito, corresponsável pela lesão
sofrida. Penalizar o violentador para Schünemann não seria a forma mais
adequada para a prevenção de lesões a bens jurídicos, já que a vítima renunciaria
ao se expor ou criar o risco pra si ao bem mediante seu comportamento
negligente, pois mesmo quando esta vítima dispunha de meios para evitar a lesão,
optou por arriscar-se, expor-se à possibilidade de violência. Assim, o
princípio da autorresponsabilidade representa um dever de autodefesa,
autoproteção da vítima que, quando não cumprido, não poderá ser penalmente
punido o agressor, a não ser que esta sua conduta represente risco para outras
pessoas da sociedade.
Quando o
já citado autor encara a vítima como mero portador do bem jurídico a ser
tutelado, despersonaliza a proteção jurídica penal, pois o objeto tutelado
deixa de ser o cidadão que se submete ao sistema jurídico e passa a ser um bem
que detém. Nesta linha de raciocínio, não parece razoável afastar a proteção ao
sujeito e “coisificar” o objeto de tutela penal.[4]
O Direito Penal não estaria, assim, defendendo o indivíduo, afastando-se de
princípios constitucionais diretores de todo ordenamento, em vista o princípio
da dignidade da pessoa humana. Seria digno/razoável/aceitável excepcionar a
tutela penal à mulher que usa roupas que mostrem o seu corpo? Certamente, seria
um retrocesso, ferindo direitos fundamentais à liberdade e intimidade, por
exemplo.
A
proteção jurídica oferecida pelo Estado, antes de um dever, é um direito de
todo e qualquer cidadão. A autorresponsabilidade como argumento para retirar a
tipicidade da conduta do ofensor seria uma forma de expropriar este direito
social, de forma a incitar atos violentos outros de maneira indireta pela
previsibilidade da atipicidade da conduta diante da vulnerabilidade negligente
do ofendido, e de punir a vítima por ter sido lesionada, o que foge a toda e
qualquer lógica de um sistema jurídico democrático-social. Não poderia a pouca
roupa ou falta dela ser uma incitação à lesão contra uma pessoa. Aceitar a
situação como uma forma de autocolocação em perigo significaria exigir do sujeito uma capacidade de prever que algo possa lhe acontecer pela simples
escolha da roupa, o que nos parece imputar um estado de hipervigilância,
criando uma prisão têxtil.
Nesta semana polêmica, em contrapartida ao protesto #NãoMereçoSerEstuprada, surgiu o movimento pelo direito de ser machista. Na verdade, nas páginas de redes sociais do movimento algumas pessoas passaram a se manifestar com frases machistas, como “Se tivesse lavando a louça, não tinha estupro”. Então, surge também o #DireitoDeSerMachista, protesto que de certa forma defende a configuração de autocolocação em perigo, nestes casos, e a aplicação do princípio da autorresponsabilidade. Esta reação fora muito reprovada pela maioria dos internautas, que afirmam que aqueles que defendem o direito de ser machista não podem buscar ensinar à vítima a não ser estuprada, mas exigir do sujeito agressor não se torna estuprador.
fez eu ficar na fissura
agora eu não posso deixar pra lá"
("Jogo de Cena" - Ricardo Chaves)
Talvez
restringir-se ao caso trazido pela pesquisa não demonstre o verdadeiro
retrocesso que este modo de pensar poderia alavancar. Mas se imaginarmos uma
situação em que um homem anda com um relógio de ouro, conversando ao celular de
última geração, usando roupa de grife, carregando uma quantia considerável de
dinheiro no bolso, em uma rua deserta, durante a madrugada, e ele fosse
assaltado por dois sujeitos sem armas, seria legítimo, pelo princípio da
autorresponsabilidade, que os ofensores não fossem responsabilizados, uma vez
que as medidas de precaução, de autodefesa não foram tomadas, já que sabemos
que o grau de insegurança pública presenciada hoje não nos permite este tipo de
conduta. Optando por esta perspectiva, seria defensável o princípio da
autorresponsabilidade?
“Seu
corpo é fruto proibido
É a chave de todo pecado e da libido”
É a chave de todo pecado e da libido”
(“Olhar 43” – RPM)
Dirigindo-nos
aos que de fato acreditam que as vestes de uma pessoa possa autorizar um
comportamento reprovável de outrem, é desproporcional aceitar que uma mulher
assuma o risco de ter seu corpo violado; que tenha o desejo, ao escolher uma
roupa, de ser violentada. Parece-nos que esta polêmica insurge-se em duas
perspectivas: retroceder e questionar os direitos alcançados pelas mulheres,
inclusive o direito sobre o seu próprio corpo, direito de liberdade de ir e
vir, direito à sua intimidade. Não é aceitável, em nossa atual sociedade, que,
apesar de estar muito longe de alcançar uma democracia plena, já garante
vitórias de muitas lutas sociais inquestionáveis. Aplicar o princípio da
autorresponsabilidade imputa à vítima um dever que, ao invés de deixá-la ainda
mais protegida, torna-a demasiadamente vulnerável, não só considerando a vítima
como uma mulher, mas como todo e qualquer cidadão que venha quebrar com o seu
dever de prevenção, precaução. Em uma sociedade capitalista que tem valorizado
mais o ter que o ser, não se pode permitir que este vício venha a macular o
sistema jurídico, pois este sim deve garantir uma ordem social livre de
pré-conceitos; pré-julgamentos; seria sobrecarregar a vítima de uma
responsabilidade que foge ao seu âmbito de controle, seria puní-la pela conduta
de outrem. Não parece ser lógico punir a vítima por ser vítima.
*Aluna do 7º semestre de Direito da Faculdade Baiana de Direito e Gestão, Salvador-BA. Contato: amandacarolinalucas2@gmail.com
**Aluna do 2º semestre de Direito da Faculdade Baiana de Direito e Gestão, Salvador-BA. Contato: kiki_gonzaga@hotmail.com
*Aluna do 7º semestre de Direito da Faculdade Baiana de Direito e Gestão, Salvador-BA. Contato: amandacarolinalucas2@gmail.com
**Aluna do 2º semestre de Direito da Faculdade Baiana de Direito e Gestão, Salvador-BA. Contato: kiki_gonzaga@hotmail.com
Referências
Bibliográficas:
- SCHUNEMANN, Bernd. A posição da vítima no sistema da justiça penal: um modelo em três colunas. In: Estudos de direito penal, direito processual penal e filosofia do direito. Luís Greco (Coordenador). Madri/Barcelona/Buenos Aires/São Paulo: Marcial Pons, 2013, Pág. 117 a 119.
- SCHÜNEMANN, Bernd. Temas actuales y permanentes delderecho penal despuésdel milênio. Madrid: Tecnos, 2002.
- ROXIN, Claus. Sobre a discussão acerca da heterocolocação em perigo consentida. Direito Penal como crítica da pena. Estudos em homenagem a Juarez Tavares por seu 70º aniversário em 2 de setembro de 2012. Organizadores Luís Greco e Antonio Martins. Madri/Barcelona/Buenos Aires/ São Paulo: Marcial Pons, 2012.
- CORDEIRO, Euller Xavier. Vitimodogmática. Uma análise dogmática do comportamento da vítima. In: Estudos contemporâneos de vitimologia. Organizadores Marisa Helena D’Arbo Alves de Freitas e Roberto Faleiros Galvão Júnior. São Paulo: Cultura Acadêmica: Editora UNESP, 2011.
- PORTUGAL, Daniela Carvalho.O Direito Penal dos Mil Perdões: sobre os limites da exclusão da tipicidade penal pela via da ampliação do âmbito de responsabilidade da vítima. 2014. 143 p. Dissertação (Doutorado em Direito Público) – Faculdade de Direito, Universidade Federal da Bahia, Salvador.
[1]CORDEIRO, Euller
Xavier. Vitimodogmática. Uma análise dogmática do comportamento da vítima. In: Estudos
contemporâneos de vitimologia. Organizadores Marisa Helena D’Arbo Alves de Freitas
e Roberto Faleiros Galvão Júnior. São Paulo: Cultura Acadêmica: Editora UNESP,
2011. Pág. 25 a 75.
[2]CORDEIRO, Euller Xavier. op. cit. Pág 38.
[3]PORTUGAL, Daniela Carvalho. O Direito Penal dos Mil Perdões: sobre os
limites da exclusão da tipicidade penal pela via da ampliação do âmbito de responsabilidade
da vítima. 2014.143 p. Dissertação (Doutorado em Direito Público) – Faculdade
de Direito, Universidade Federal da Bahia, Salvador. Pág. 57.
[4]PORTUGAL,
Daniela Carvalho.op cit.Pág. 118.
Muito bom o artigo. Parabéns!
ResponderExcluirMuito bem escrito o artigo. Parabéns!
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