quinta-feira, 24 de abril de 2014

De que forma, no âmbito da violência doméstica, se desenvolve o papel da justiça restaurativa?






Por Viviane Gonçalves*


Diante de uma variedade de temas com grande repercussão social e jurídica a ser analisado e debatido em nosso blog, emerge uma discussão atual e de grande relevância, porém ainda pouco debatida. Trata-se da Justiça Restaurativa como um meio alternativo de resolução de conflitos no âmbito jurídico. Embora ainda desconhecida para a maioria da população, tem logrado bastante êxito advindo de sua correta aplicação.

Oriunda da jurisdição internacional, sendo posta em prática, inicialmente, em países com o regime jurídico common law, a Justiça Restaurativa vem sendo implementada gradativamente no Brasil. Trata-se de um desafio frente à precariedade e insuficiência do tradicional modelo de justiça retributivo. A partir dela, muda-se o perfil das partes envolvidas no conflito. SELMA SAMPAIO cita o entendimento de Burt Galaway, segundo o qual, na perspectiva tradicional, a vítima demonstrava espanto, esquiva e a não-participação na solução do seu conflito. Colocava-se no Estado o peso da total responsabilização no enfrentamento deste. Seu objetivo maior era a severa penalização do autor do crime.

Contudo, nas experiências consensuais a vítima torna-se parte ativa e participativa do processo, buscando entender a causa e o motivo do conflito, sob a orientação de um mediador. De forma mais tolerante e flexível, especialmente quando se trata de delitos de pequena e média gravidade, demonstra uma preocupação maior na resolução do conflito de forma mais razoável e satisfatória para ambas as partes envolvidas.

O modelo consensual de solução de conflitos de natureza penal busca a compreensão dos aspectos intersubjetivos que levaram o agente à prática do delito, considerando os sentimentos de todos os envolvidos naquela situação fática,sem, no entanto, a estigmatização ou vitimização peculiares. O desapego às formalidades processuais dá lugar a uma preocupação com as consequências daquele ato vislumbrando uma resolução razoável e proporcional para ambas às partes envolvidas.SELMA SAMPAIO preleciona que:

A área da pequena e média criminalidade, constitui, sem dúvida, o domínio onde se pode ir mais longe, “reinventando” a punição, na via da reparação-como terceira via, ao lado das penas e das medidas de segurança -, e na renovação de soluções de diversão, flexibilizando o princípio da legalidade e explorando as virtualidades, designadamente, da mediação.

É imprescindível, no entanto, a diferenciação dos delitos que comportam tal tipo de perspectiva perante a resolução de conflitos. Neste cenário se inserem os delitos que envolvem violência doméstica, caracterizadores de pequena e média criminalidade.

São casos em que, na maioria das vezes, o réu comete as agressões motivado por um estado de beligerância e  descontrole, cabendo aí a busca por um entendimento mútuo entre as partes envolvidas. Visa-se uma harmonização e pacificação do conflito. Nasce daí a necessidade premente de desmistificar a ideia de “justiça” atrelada a um processo solene, doloroso, custoso, burocrático e, sobretudo, pouco eficaz como nos moldes tradicionais. No que concerne aos avanços que acompanham a modernidade em todos os seus âmbitos, cabe à justiça tradicional, baseada na retidão e unilateralidade, ceder espaço, quando necessário e pertinente, a novos modelos de resolução de conflitos.

Em face a uma sociedade contemporânea múltipla e plural, na qual a inovação é palavra de ordem, o apego à tradicionalismos incorre em erros substanciais, sobretudo do que tange a razoabilidade na aplicação da justiça. Sendo assim, a mediação vem encontrando enorme aceitação frente à realidade fática vigente. Nela, as partes envolvidas não incorporam rótulos ou assumem papéis. O crime não é analisado em si, de forma dogmática e engessada. Faz-se uma releitura deste, preocupando-se com seus efeitos. Em sentido amplo, analisa-se as consequências do crime e possíveis impactos na vida do indivíduo, nas relações interpessoais das partes envolvidas e nas relações sociais.

Há um enfrentamento direto do problema através da culpa assumida,oportunizando que, tanto a vítima, como o agressor ou familiares, reflitam sobre suas condutas e conscientizem-se, por si só, do caminho de transformação que desejam trilhar a fim de reparar os elos rompidos a partir da agressão. Tais situações não cabem resoluções propedêuticas e normativadas apenas. Requer um olhar mais apurado face às intersubjetividades de cada ser humano. Trata-se de um momento de dor e perdas não apenas físicas ou materiais: perda do afeto, do respeito, dos sonhos almejados com a outra pessoa e, sobretudo, do amor próprio que se perde no momento em que tais agressões se tornam rotina. Diante de tal cenário, torna-se evidente que o método hermético de resolução de conflitos não é suficientemente eficaz quando estes possuem como cerne a violência doméstica.

Nesta seara, a justiça tradicional não atende aos fins envolvidos na questão em análise: há um favorecimento da vítima na reparação do dano e o seu distanciamento durante todo o processo burocrático;encorajamento focadona reparação dos danos e nas penas alternativas apenas. Inexiste o estímulo à modificação de comportamento e à reparabilidade dos demais efeitos danosos gerados pelo agressor(afetivos, morais e emocionais); o formato tradicional de resolução de conflitos visa, sobretudo,o reparo de prejuízos causados pelo delito. Não possui como prioridade o restabelecimento da paz e harmonia,que foram perdidos no momento da agressão.

Através de sessões contínuas de diálogo entre as partes envolvidas, juntamente com o mediador e, quando necessário, profissionais psicossociais, chega-se a um entendimento total do ocorrido, avaliando-se o contexto em todos os seus âmbitos (moral, social, econômico e político).

Segundo ILANA MARTINS LUZ (2012, p.102) esse novo modelo de justiça adveio da crise do sistema penal que, originou um movimento denominado “acordar criminal” no qual vários estudiosos se debruçaram sobre as críticas e insuficiências do modelo penal vigente e decidiram resolver a questão através de um modelo complementar. Esse novo modelo deveria alterar a forma de pensar e executar a justiça.A evolução do Direito Penal vem demonstrando com bastante fluidez que este não cumpre o papel ao qual se designou. Corolário disso é uma sociedade que criminaliza condutas indistintamente, tornando-se cada dia mais violenta e excludente.

As formas punitivas cruéis e estigmatizantes em nada contribuem para uma possível ressocialização do indivíduo.Como fruto de uma sociedade que agoniza por prementes mudanças, emerge a Justiça Restaurativa, partindo do princípio básico de que não devemos aceitar passivamente o que está posto quando este não atende aos anseios da realidade fática. O caminho para a mudança é assumir uma postura questionadora, contestativa e participativa na busca de uma transformação social.Em vista da atuação do Direito Penal num Estado Democrático de Direito, preleciona CEZAR ROBERTO BITENCOURT:

Tomando como referente o sistema político instituído pela Constituição Federal de 1988, podemos afirmar, sem sombra de dúvidas, que o Direito Penal no Brasil deve ser concebido e estruturado a partir de uma concepção democrática do Estado de Direito, respeitando os princípios e garantias reconhecidos na nossa Carta Magna. Significa, em poucas palavras, submeter o exercício do ius puniendi ao império da lei ditada de acordo com as regras do consenso democrático, colocando o Direito Penal a serviço dos interesses da sociedade, particularmente da proteção de bens jurídicos fundamentais, para o alcance de uma justiça equitativa.

Assim sendo, não é todo bem jurídico que irá receber chancela estatal, apenas os de maior importância para a coletividade. Deve-se atentar ao fato da criminalização indiscriminadade condutas por ser a liberdade um direito fundamental assegurado ao indivíduo constitucionalmente.

Nesse sentido, incorrem os limites e alcance do poder punitivo estatal, sendo de fundamental importância o papel do bem jurídico. É ele o elo que fundamenta e delimita a criação de tipos penais, auxiliando também na aplicação de tipos penais descritos na parte especial, orientando para que não excedam o âmbito de punibilidade. Sobre o correto entendimento de bens jurídicos, CEZAR ROBERTO frisa uma interessante proposta formulada por ROXIN, que defende:

Em um Estado democrático de Direito, que é o modelo de Estado que tenho como base, as normas penais somente podem perseguir a finalidade de assegurar aos cidadãos uma coexistência livre e pacífica garantindo ao mesmo tempo o respeito de todos os direitos humanos. Assim, e na medida em que isso não possa ser alcançado de forma mais grata, o Estado deve garantir penalmente não só as condições individuais necessárias para tal coexistência (como a proteção da vida e da integridade física, da liberdade de atuação, da propriedade, etc.), mas também das instituições estatais que sejam imprescindíveis a tal fim (uma Administração da justiça que funcione, sistemas fiscais e monetários intactos, uma Administração sem corrupção, etc.). Chamo ‘bens jurídicos’ a todos os objetos que são legitimamente protegidos pelas normas sob essas condições.

Assim, a proteção dos bens jurídicos torna-se relevante na construção dos tipos penais, pois, torna possível a distinção do delito de atitudes não-delitivas interiores, e, por outro lado, dos fatores materiais que não incitam lesão a bem algum. Dessa forma, ao ser utilizado como princípio exegético em um Estado Democrático de Direito, terá como corolário a estruturação do delito.

Atrelada à proteção dos bens jurídicos, encontram-se, coadunamente, as funções da pena. Estas devem manter-se nos limites do fato e da proporcionalidade, podendo, após, ser imposta mediante procedimento que possibilite garantias jurídico-constitucionais. Nesse interim, torna-se indispensável tecer considerações referentes ao paradigma de punir. Este tem a pena como única solução, a qual estrutura o modelo penal em evidência, tendo sido a privativa de liberdade adotada na Modernidade como sanção cardeal. Assim, o paradigma de punir subdivide-se no modelo retributivo e preventivo. Nas palavras de ROXIN:

a teoria da retribuição não encontra o sentido da pena na perspectiva de algum fim socialmente útil, senão em que mediante a imposição de um mal merecidamente se retribui, equilibra e expia a culpabilidade do autor pelo fato cometido. Se fala aqui de uma teoria ‘absoluta’ porque para ela o fim da pena é independente, ‘desvinculado’, de seu efeito social. A concepção da pena como retribuição compensatória realmente já é conhecida desde a antiguidade e permanece viva na consciência dos profanos com uma certa naturalidade: a pena deve ser justa e isso pressupõe que se corresponda em sua duração e intensidade com a gravidade do delito, que o compense.

A sociedade, em geral, se satisfaz com esta finalidade, ou seja, a retribuição do mal praticado pelo condenado somente se concretiza a partir da privativa de liberdade. Apenas desta forma se compensará o mal produzido, já que a pena restritiva de direitos ou a pena de multa são insuficientes para tal feito.

Em outras palavras, apenas o aprisionamento do infrator trará ao homem a sensação regozijante de que a justiça está sendo efetivada. Sobre o caráter preventivo, há uma ênfase na ressocialização através da pena. Espera-se que o agente sopese as consequências antes do cometimento de outros delitos. Com maestria aduz Cezar Roberto Bitencourt:

a prevenção especial não busca a intimidação do grupo social nem a retribuição do fato praticado, visando apenas àquele indivíduo que já delinquiu para fazer com que não volte a transgredir as normas jurídico-penais.

O embate entre ambas as teorias terminou por originar uma teoria eclética, mista ou unificadora da pena, inicialmente defendida por Merkel (Bitencourt, 2013; p.43). Vigente em nossa legislação brasileira, tal teoria leva em consideração ambos os pontos de vista como partes de um todo mais complexo, que é a pena. Sendo o Estado responsável por rotular as condutas como criminosas e organizar esse pensamento de forma hermética, alheia ao conhecimento da vítima e do ofensor, torna-se ainda mais relevante reiterar os questionamentos acerca da conduta desenvolvida por este mencionado ente.

O Estado existe com o escopo de exercer um poder e, através disso, exercer a sua legitimidade. Todavia, a forma com que este poder é exercido a fim de manter-se na posição de soberano é de fundamental importância no delineamento da construção deste ente político e social. Justifica-se, assim, a necessidade de contenção deste poder por parte do Judiciário. Surge daí a importância de um Direito Penal articulado que positive normas e as modifique ou questione quando necessário, revestindo-se de um poder de contestação em sentido contrário a uma estagnação ou subordinação.

Tais ponderações arrolam-se à premissa de que o Estado tem o poder/dever de cumprir as funções que lhes são conferidas, respeitando, contudo, os limites das esferas individuais da vida de cada indivíduo. Nesse íntere, reunindo tais características aqui analisadas e atendendo aos anseios de uma sociedade moderna que busca por maiores mudanças, confirma-se a notável relevância do papel da Justiça Restaurativa.

As situações de violência no âmbito doméstico e familiar contra a mulher, ainda hoje, com o advento da Lei n° 11.340/2006, se configura como um problema endêmico e de saúde pública. Tal fator decorre das alarmantes estatísticas que são divulgadas sobre o assunto.

O referido diploma legal é inegavelmente um avanço para a sociedade brasileira, por se tratar de um marco na história da proteção legal das mulheres. Questiona-se, todavia, o porquê da considerável ineficácia deste instrumento. Em face disso, preleciona THAISE DE CARVALHO (2012,p. 132):

Nesse sentido, o caminho a ser trilhado é trazer a ofendida para debater o problema pessoalmente, entendendo as nuances que o envolvem, participando presencialmente e largamente do processo de construção da solução, para, enfim, tomar as rédeas da sua vida.

Ainda de acordo com o entendimento da autora, deve haver um empoderamento da figura feminina, vítima da violência. Trata-se de uma mudança de postura, na qual a mulher passa a ser o centro da discussão assumindo o comando da sua própria vida. Busca-se com isso, que haja um equilíbrio de laços deixando de lado o papel de submissão.

Posto isso, torna-se ainda mais evidente a enorme diferença que há no fato de tal problemática ser concebida no âmbito da justiça tradicional, ao revés de ser tratada na Justiça Restaurativa. Esta, como já dito alhures, conduz o conflito de maneira diferenciada, sem que haja espaço para qualquer posição vitimizada ou estigmatizada (que reforça o teor discriminatório cultural de uma sociedade machista) ou preocupações exclusivamente materiais (colocando em segundo plano os danos morais, materiais e emocionais gerados pelo agressor).

A Justiça Restaurativa vem demonstrando ser a porta de entrada e/ou o divisor de águas para o correto tratamento frente às mencionadas questões de gênero. A mediação é pautada em sessões onde o diálogo entre o agressor e a vítima se fazem presente, mediante a presença obrigatória do mediador e, quando necessário, de profissionais psicossociais. Busca-se construir um protagonismo absoluto da vítima e do agressor na solução do problema, em vista de encorajar o arrependimento, o perdão. O cerne primordial desta forma de justiça é a real solução do conflito, no seu sentido mais genuíno, através do restabelecimento da paz perdida com a ruptura de um elo.



*Aluna do 4° semestre do curso de Direito da Faculdade Baiana de Direito e Gestão; Salvador- Bahia; Contato: voxviviane@gmail.com.


BIBLIOGRAFIA





Nenhum comentário:

Postar um comentário

Sua participação é muito importante para nós! Envie-nos a sua opinião!