Por Viviane Gonçalves*
Diante
de uma variedade de temas com grande repercussão social e jurídica a ser
analisado e debatido em nosso blog, emerge uma discussão atual e de grande
relevância, porém ainda pouco debatida. Trata-se da Justiça Restaurativa como
um meio alternativo de resolução de conflitos no âmbito jurídico. Embora ainda
desconhecida para a maioria da população, tem logrado bastante êxito advindo de
sua correta aplicação.
Oriunda
da jurisdição internacional, sendo posta em prática, inicialmente, em países
com o regime jurídico common law, a Justiça Restaurativa vem sendo implementada
gradativamente no Brasil. Trata-se de um desafio frente à precariedade e
insuficiência do tradicional modelo de justiça retributivo. A partir dela,
muda-se o perfil das partes envolvidas no conflito. SELMA SAMPAIO cita o
entendimento de Burt Galaway, segundo
o qual, na perspectiva tradicional, a vítima demonstrava espanto, esquiva e a não-participação
na solução do seu conflito. Colocava-se no Estado o peso da total responsabilização
no enfrentamento deste. Seu objetivo maior era a severa penalização do autor do
crime.
Contudo,
nas experiências consensuais a vítima torna-se parte ativa e participativa do
processo, buscando entender a causa e o motivo do conflito, sob a orientação de
um mediador. De forma mais tolerante e flexível, especialmente quando se trata
de delitos de pequena e média gravidade, demonstra uma preocupação maior na
resolução do conflito de forma mais razoável e satisfatória para ambas as
partes envolvidas.
O
modelo consensual de solução de conflitos de natureza penal busca a compreensão
dos aspectos intersubjetivos que levaram o agente à prática do delito,
considerando os sentimentos de todos os envolvidos naquela situação fática,sem,
no entanto, a estigmatização ou vitimização peculiares. O desapego às
formalidades processuais dá lugar a uma preocupação com as consequências
daquele ato vislumbrando uma resolução razoável e proporcional para ambas às
partes envolvidas.SELMA SAMPAIO preleciona que:
A
área da pequena e média criminalidade, constitui, sem dúvida, o domínio onde se
pode ir mais longe, “reinventando” a punição, na via da reparação-como terceira
via, ao lado das penas e das medidas de segurança -, e na renovação de soluções
de diversão, flexibilizando o princípio da legalidade e explorando as
virtualidades, designadamente, da mediação.
É
imprescindível, no entanto, a diferenciação dos delitos que comportam tal tipo
de perspectiva perante a resolução de conflitos. Neste cenário se inserem os
delitos que envolvem violência doméstica, caracterizadores de pequena e média
criminalidade.
São casos
em que, na maioria das vezes, o réu comete as agressões motivado por um estado
de beligerância e descontrole, cabendo
aí a busca por um entendimento mútuo entre as partes envolvidas. Visa-se uma
harmonização e pacificação do conflito. Nasce daí a necessidade premente de
desmistificar a ideia de “justiça” atrelada a um processo solene, doloroso,
custoso, burocrático e, sobretudo, pouco eficaz como nos moldes tradicionais. No
que concerne aos avanços que acompanham a modernidade em todos os seus âmbitos,
cabe à justiça tradicional, baseada na retidão e unilateralidade, ceder espaço,
quando necessário e pertinente, a novos modelos de resolução de conflitos.
Em
face a uma sociedade contemporânea múltipla e plural, na qual a inovação é
palavra de ordem, o apego à tradicionalismos incorre em erros substanciais,
sobretudo do que tange a razoabilidade na aplicação da justiça. Sendo assim, a
mediação vem encontrando enorme aceitação frente à realidade fática vigente.
Nela, as partes envolvidas não incorporam rótulos ou assumem papéis. O crime
não é analisado em si, de forma dogmática e engessada. Faz-se uma releitura
deste, preocupando-se com seus efeitos. Em sentido amplo, analisa-se as
consequências do crime e possíveis impactos na vida do indivíduo, nas relações
interpessoais das partes envolvidas e nas relações sociais.
Há
um enfrentamento direto do problema através da culpa assumida,oportunizando que,
tanto a vítima, como o agressor ou familiares, reflitam sobre suas condutas e
conscientizem-se, por si só, do caminho de transformação que desejam trilhar a fim
de reparar os elos rompidos a partir da agressão. Tais situações não cabem
resoluções propedêuticas e normativadas apenas. Requer um olhar mais apurado
face às intersubjetividades de cada ser humano. Trata-se de um momento de dor e
perdas não apenas físicas ou materiais: perda do afeto, do respeito, dos sonhos
almejados com a outra pessoa e, sobretudo, do amor próprio que se perde no
momento em que tais agressões se tornam rotina. Diante de tal cenário, torna-se
evidente que o método hermético de resolução de conflitos não é suficientemente
eficaz quando estes possuem como cerne a violência doméstica.
Nesta
seara, a justiça tradicional não atende aos fins envolvidos na questão em
análise: há um favorecimento da vítima na reparação do dano e o seu
distanciamento durante todo o processo burocrático;encorajamento focadona
reparação dos danos e nas penas alternativas apenas. Inexiste o estímulo à
modificação de comportamento e à reparabilidade dos demais efeitos danosos
gerados pelo agressor(afetivos, morais e emocionais); o formato tradicional de
resolução de conflitos visa, sobretudo,o reparo de prejuízos causados pelo
delito. Não possui como prioridade o restabelecimento da paz e harmonia,que
foram perdidos no momento da agressão.
Através
de sessões contínuas de diálogo entre as partes envolvidas, juntamente com o
mediador e, quando necessário, profissionais psicossociais, chega-se a um
entendimento total do ocorrido, avaliando-se o contexto em todos os seus
âmbitos (moral, social, econômico e político).
Segundo
ILANA MARTINS LUZ (2012, p.102) esse novo modelo de justiça adveio da crise do
sistema penal que, originou um movimento denominado “acordar criminal” no qual
vários estudiosos se debruçaram sobre as críticas e insuficiências do modelo
penal vigente e decidiram resolver a questão através de um modelo complementar.
Esse novo modelo deveria alterar a forma de pensar e executar a justiça.A
evolução do Direito Penal vem demonstrando com bastante fluidez que este não
cumpre o papel ao qual se designou. Corolário disso é uma sociedade que
criminaliza condutas indistintamente, tornando-se cada dia mais violenta e
excludente.
As
formas punitivas cruéis e estigmatizantes em nada contribuem para uma possível
ressocialização do indivíduo.Como fruto de uma sociedade que agoniza por
prementes mudanças, emerge a Justiça Restaurativa, partindo do princípio básico
de que não devemos aceitar passivamente o que está posto quando este não atende
aos anseios da realidade fática. O caminho para a mudança é assumir uma postura
questionadora, contestativa e participativa na busca de uma transformação
social.Em vista da atuação do Direito Penal num Estado Democrático de Direito,
preleciona CEZAR ROBERTO BITENCOURT:
Tomando
como referente o sistema político instituído pela Constituição Federal de 1988,
podemos afirmar, sem sombra de dúvidas, que o Direito Penal no Brasil deve ser
concebido e estruturado a partir de uma concepção democrática do Estado de
Direito, respeitando os princípios e garantias reconhecidos na nossa Carta
Magna. Significa, em poucas palavras, submeter o exercício do ius puniendi ao
império da lei ditada de acordo com as regras do consenso democrático, colocando
o Direito Penal a serviço dos interesses da sociedade, particularmente da
proteção de bens jurídicos fundamentais, para o alcance de uma justiça
equitativa.
Assim sendo, não é todo bem jurídico que
irá receber chancela estatal, apenas os de maior importância para a
coletividade. Deve-se atentar ao fato da criminalização indiscriminadade condutas
por ser a liberdade um direito fundamental assegurado ao indivíduo
constitucionalmente.
Nesse sentido, incorrem os limites e
alcance do poder punitivo estatal, sendo de fundamental importância o papel do
bem jurídico. É ele o elo que fundamenta e delimita a criação de tipos penais,
auxiliando também na aplicação de tipos penais descritos na parte especial,
orientando para que não excedam o âmbito de punibilidade. Sobre o correto
entendimento de bens jurídicos, CEZAR ROBERTO frisa uma interessante proposta
formulada por ROXIN, que defende:
Em um Estado
democrático de Direito, que é o modelo de Estado que tenho como base, as normas
penais somente podem perseguir a finalidade de assegurar aos cidadãos uma
coexistência livre e pacífica garantindo ao mesmo tempo o respeito de todos os
direitos humanos. Assim, e na medida em que isso não
possa ser alcançado de forma mais grata, o Estado deve garantir penalmente não
só as condições individuais necessárias para tal coexistência (como a proteção
da vida e da integridade física, da liberdade de atuação, da propriedade,
etc.), mas também das instituições estatais que sejam imprescindíveis a tal fim
(uma Administração da justiça que funcione, sistemas fiscais e monetários
intactos, uma Administração sem corrupção, etc.). Chamo ‘bens jurídicos’ a
todos os objetos que são legitimamente protegidos pelas normas sob essas
condições.
Assim, a proteção dos bens jurídicos
torna-se relevante na construção dos tipos penais, pois, torna possível a
distinção do delito de atitudes não-delitivas interiores, e, por outro lado,
dos fatores materiais que não incitam lesão a bem algum. Dessa forma, ao ser
utilizado como princípio exegético em um Estado Democrático de Direito, terá
como corolário a estruturação do delito.
Atrelada à proteção dos bens jurídicos,
encontram-se, coadunamente, as funções da pena. Estas devem manter-se nos
limites do fato e da proporcionalidade, podendo, após, ser imposta mediante
procedimento que possibilite garantias jurídico-constitucionais. Nesse interim,
torna-se indispensável tecer considerações referentes ao paradigma de punir.
Este tem a pena como única solução, a qual estrutura o modelo penal em
evidência, tendo sido a privativa de liberdade adotada na Modernidade como
sanção cardeal. Assim, o paradigma de punir subdivide-se no modelo retributivo
e preventivo. Nas palavras de ROXIN:
a teoria da
retribuição não encontra o sentido da pena na perspectiva de algum fim
socialmente útil, senão em que mediante a imposição de um mal merecidamente se
retribui, equilibra e expia a culpabilidade do autor pelo fato cometido. Se
fala aqui de uma teoria ‘absoluta’ porque para ela o fim da pena é
independente, ‘desvinculado’, de seu efeito social. A concepção da pena como
retribuição compensatória realmente já é conhecida desde a antiguidade e
permanece viva na consciência dos profanos com uma certa naturalidade: a pena
deve ser justa e isso pressupõe que se corresponda em sua duração e intensidade
com a gravidade do delito, que o compense.
A sociedade, em geral, se satisfaz com
esta finalidade, ou seja, a retribuição do mal praticado pelo condenado somente
se concretiza a partir da privativa de liberdade. Apenas desta forma se
compensará o mal produzido, já que a pena restritiva de direitos ou a pena de
multa são insuficientes para tal feito.
Em outras palavras, apenas o
aprisionamento do infrator trará ao homem a sensação regozijante de que a
justiça está sendo efetivada. Sobre o caráter preventivo, há uma ênfase na
ressocialização através da pena. Espera-se que o agente sopese as consequências
antes do cometimento de outros delitos. Com maestria aduz Cezar Roberto
Bitencourt:
a prevenção especial
não busca a intimidação do grupo social nem a retribuição do fato praticado,
visando apenas àquele indivíduo que já delinquiu para fazer com que não volte a
transgredir as normas jurídico-penais.
O embate entre ambas as teorias terminou
por originar uma teoria eclética, mista ou unificadora da pena, inicialmente
defendida por Merkel (Bitencourt, 2013; p.43). Vigente em nossa legislação
brasileira, tal teoria leva em consideração ambos os pontos de vista como
partes de um todo mais complexo, que é a pena. Sendo o Estado responsável por
rotular as condutas como criminosas e organizar esse pensamento de forma
hermética, alheia ao conhecimento da vítima e do ofensor, torna-se ainda mais
relevante reiterar os questionamentos acerca da conduta desenvolvida por este
mencionado ente.
O Estado existe com o escopo de exercer
um poder e, através disso, exercer a sua legitimidade. Todavia, a forma com que
este poder é exercido a fim de manter-se na posição de soberano é de
fundamental importância no delineamento da construção deste ente político e
social. Justifica-se, assim, a necessidade de contenção deste poder por parte
do Judiciário. Surge daí a importância de um Direito Penal articulado que
positive normas e as modifique ou questione quando necessário, revestindo-se de
um poder de contestação em sentido contrário a uma estagnação ou subordinação.
Tais ponderações arrolam-se à premissa
de que o Estado tem o poder/dever de cumprir as funções que lhes são
conferidas, respeitando, contudo, os limites das esferas individuais da vida de
cada indivíduo. Nesse íntere, reunindo tais características aqui analisadas e
atendendo aos anseios de uma sociedade moderna que busca por maiores mudanças,
confirma-se a notável relevância do papel da Justiça Restaurativa.
As situações de violência no âmbito
doméstico e familiar contra a mulher, ainda hoje, com o advento da Lei n°
11.340/2006, se configura como um problema endêmico e de saúde pública. Tal
fator decorre das alarmantes estatísticas que são divulgadas sobre o assunto.
O referido diploma legal é inegavelmente
um avanço para a sociedade brasileira, por se tratar de um marco na história da
proteção legal das mulheres. Questiona-se, todavia, o porquê da considerável
ineficácia deste instrumento. Em face disso, preleciona THAISE DE CARVALHO
(2012,p. 132):
Nesse sentido, o
caminho a ser trilhado é trazer a ofendida para debater o problema
pessoalmente, entendendo as nuances que o envolvem, participando
presencialmente e largamente do processo de construção da solução, para, enfim,
tomar as rédeas da sua vida.
Ainda de acordo com o entendimento da
autora, deve haver um empoderamento da figura feminina, vítima da violência.
Trata-se de uma mudança de postura, na qual a mulher passa a ser o centro da
discussão assumindo o comando da sua própria vida. Busca-se com isso, que haja
um equilíbrio de laços deixando de lado o papel de submissão.
Posto isso, torna-se ainda mais evidente
a enorme diferença que há no fato de tal problemática ser concebida no âmbito
da justiça tradicional, ao revés de ser tratada na Justiça Restaurativa. Esta,
como já dito alhures, conduz o conflito de maneira diferenciada, sem que haja
espaço para qualquer posição vitimizada ou estigmatizada (que reforça o teor
discriminatório cultural de uma sociedade machista) ou preocupações exclusivamente
materiais (colocando em segundo plano os danos morais, materiais e emocionais
gerados pelo agressor).
A Justiça Restaurativa vem demonstrando
ser a porta de entrada e/ou o divisor de águas para o correto tratamento frente
às mencionadas questões de gênero. A mediação é pautada em sessões onde o diálogo
entre o agressor e a vítima se fazem presente, mediante a presença obrigatória
do mediador e, quando necessário, de profissionais psicossociais. Busca-se construir
um protagonismo absoluto da vítima e do agressor na solução do problema, em
vista de encorajar o arrependimento, o perdão. O cerne primordial desta forma
de justiça é a real solução do conflito, no seu sentido mais genuíno, através
do restabelecimento da paz perdida com a ruptura de um elo.
*Aluna do 4° semestre do curso de
Direito da Faculdade Baiana de Direito e Gestão; Salvador- Bahia; Contato:
voxviviane@gmail.com.
BIBLIOGRAFIA
- LUZ, Ilana Martins. Justiça Restaurativa: A ascenção do Intérprete e a nova racionalidade criminal. 2012. 205 p. Dissertação (Mestrado em Direito Público) – Faculdade de Direito, Universidade Federal da Bahia, Salvador.
- GUTIERRIZ, Thaize de Carvalho Correia. Justiça Restaurativa: Método Adequado de resolução dos conflitos jurídico-penais praticados contra a mulher em ambiente doméstico. 2012. 180p. Dissertação (Mestrado em Direito Público) – Faculdade de Direito, Universidade Federal da Bahia, Salvador.
- http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/fortaleza/3052.pdf. Acesso em 13 de Abril de 2014, às 14:22h.
- http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2177-70552012000100009&lang=pt. Acesso em 13 de Abril, às 15:00 h.
- http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/13519-13520-1-PB.pdf. Acesso em 13 de Abril de 2014, às 22:22h.
- BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. v.1, pág. 44.
- GRECO, Rogério.Curso de Direito Penal:parte geral. 14.ed.Rio de Janeiro: IMPETUS, 2006.v.1,págs 33-35.
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