http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2014/04/jovem-nega-estupro-e-policia-vai-apurar-divulgacao-de-fotos-de-sexo.html
Por Lorenna Borges e
Luiza Faria
Na última sexta feira, 04 de abril, foi difundido em vários sites de informação o caso de uma estudante de 19 anos que manteve relações sexuais com cinco homens, e teve as fotos do ato compartilhadas no WhatsApp e na internet. Ao tomar conhecimento do caso, a polícia civil de São Paulo apurava a possibilidade de estupro. No entanto, ao ser contatada, a jovem negou o crime e afirmou: “Foi consentido sim”.
A liberdade é um valor jurídico de extrema
relevância social, sendo assegurado em quase todas as Constituições pós
Revolução Francesa, inclusive a nossa. Na contemporaneidade, a globalização deu
uma ênfase ainda maior às liberdades individuais e a autonomia do indivíduo
frente aos institutos tradicionais. Segundo Maria Auxiliadora Minahim (2003,
p.218), a ênfase na autonomia em detrimento da organização social que legitima
a existência do direito penal e da qual surgem os bens que devem ser por ele
protegidos, gera importantes tensões. Essas tensões se justificam pelo fato de
que, no direito penal, é muito difícil harmonizar a contradição entre a
proteção dos bens jurídicos indisponíveis – dentre os mais importantes, vida e
saúde - e a crescente liberdade da ação individual. Essa autonomia do individuo é o principal
fundamento para a construção do conceito de consentimento, que gira em torno da
idéia de ‘dispor’ do bem jurídico protegido pela esfera penal.
A palavra consentimento vem do latim consentire e, no seu sentido originário
exprime a concordância entre as partes ou uniformidade de opinião (PIERANGELI,
2001). O código penal brasileiro em sua parte geral não versa sobre o
consentimento do ofendido, porém, é fundamental compreender o teor da sua
importância para interpretação do ordenamento jurídico penal.
Para Jakobs, o consentimento pode funcionar
como excludente de tipicidade ou excludente de ilicitude. O crime de estupro,
por exemplo, descrito no Art. 213 do CP tem como integrante do tipo o dissenso
da vítima - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça – sendo assim, o consentimento funciona
como excludente da tipicidade do caso concreto. Já nos casos em que o dissenso
da vítima não é elemento integrante do tipo o consentimento torna a conduta
lícita. Tomamos como por exemplo a ação de “fazer tatuagem”, que enquadraria o
tatuador no Art 192 do Código Penal - Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem. – No entanto,
o consentimento do tatuado afasta a ilicitude da conduta.
Para Schünemann, não se deve proteger o bem
jurídico contra a vontade do titular uma vez que, assim procedendo, viola-se
sua liberdade de ação. Porém, o consentimento do ofendido deve ser avaliado e
interpretado individualmente a partir de cada caso concreto. Além disso, em
busca da segurança jurídica, a doutrina majoritária estabeleceu critérios para
a validade do consentimento.
É necessário a priori que o ofendido, no
momento de concordância, tenha capacidade jurídica para consentir. Isto
significa que o mesmo deverá ter condições de compreender o significado e as
conseqüências do seu ato. Em regra, o critério seguido é o da maioridade, ou
seja, o indivíduo que possui 18 anos e tem pleno desenvolvimento mental, tem
também a capacidade para consentir. Os relativamente ou absolutamente incapazes
também podem exercer o consentimento através de seu representante legal.
(CANFÃO, 2013)
Outro critério para validade do consentimento
é a disponibilidade do bem jurídico. Pierangeli (2001) entende por bem jurídico
penal aquele cuja lesão ou ameaça é cominada uma sanção. Para fazer uso do
consentimento, é necessário que o bem jurídico seja disponível e próprio. Neste
caso, a exclusão da tipicidade só será possível se o único titular do bem
jurídico penal protegido for aquele que aquiesce e pode dispor dele livremente.
(CANFÃO, 2013)
Vale ressaltar que existem bens majoritariamente
considerados como indisponíveis, como a vida, por exemplo. Porém, para Paulo
Queiroz (2012, p. 348- 349) não existem bens jurídicos indisponíveis de forma
absoluta, pois, a seu ver, absoluto nenhum direito é. O que existem são então,
graus de disponibilidade, considerando que até a própria vida seria passível de
relativização, a depender do contexto. Assim, seria perfeitamente válido o
consentimento para a eutanásia, destacando ainda que no Brasil, em alguns casos
excepcionais, já há a possibilidade de supressão da vida, como no direito ao
aborto no caso de gravidez resultante de estupro (CP, art 128, I e II).
O momento do consentimento também é um dos
critérios para sua validação. A manifestação de vontade deve acontecer sempre
antes ou durante a prática da conduta. Se posterior, não tem força de afastar a
tipicidade ou a ilicitude do fato. A necessidade do consentimento anterior ou
no momento da prática refere-se a renúncia à proteção penal do bem jurídico,
causando, por conseqüência, a desvalorização jurídica da conduta. Porém, para
Albino Canfão (2013 p. 16), ainda caberia ressaltar “que apesar desse
entendimento, é admissível o consentimento posterior, ou seja, após a prática
do ilícito penal. Ainda que tal manifestação de vontade não possa desvalorizar
a conduta, pode impedir ação penal quando esta depende de iniciativa da
vitima”.
Ademais, para a validade do consentimento é
necessário também que a vontade do ofendido seja produzida e manifestada sem
vícios, ou seja, que o titular do bem tenha manifestado sua vontade livremente,
sem nenhuma influencia de erro, fraude ou coação. O erro ocorre quando o indivíduo
equivoca-se sobre as circunstâncias ou elementos do fato, conhecendo-o de forma
não correspondente à realidade, declarando uma vontade diferente da que teria
caso a conhecesse. A fraude ocorre quando um terceiro emprega, intencionalmente,
artifício a fim de deturpar o conhecimento do consenciente sobre os elementos
ou as circunstâncias do fato, fazendo com que ele conceda um consentimento que
não existiria caso conhecesse a realidade. Já no uso de coação, o indivíduo tem
pleno conhecimento dos elementos e das circunstâncias fáticas, porém o consentimento
é cedido mediante violência física ou moral, exercida pelo consentido ou por
terceiro (DE LUCA, 2005).
Como critério limitador de validade, os bons
costumes, regulam situações em que o consentimento, apesar de válido, não torna
a conduta justificada. É fundamental que haja respeito à ordem pública e aos
bons costumes, caso contrário estaria concorrendo para sua incriminação, isto
é, não afasta a tipicidade e do consentimento que retira a ilicitude, sendo
inarredável um juízo valorativo acerca destas circunstâncias. Exemplificando o
caso do “campeonato de lançamento de anões”, no
qual anões, vestindo roupas de proteção, eram arremessados em direção a um
tapete acolchoado, vencendo aquele que conseguia alcançar a maior distância.
O caso foi considerado uma violação à dignidade humana, mesmo com a
argumentação dos anões, que alegavam precisar do trabalho para sua
sobrevivência. Desse modo, a contrariedade do fato consentido aos bons costumes
invalida a exclusão da tipicidade do crime.
O consentimento funcionaria então, como um
meio de balancear a autonomia do indivíduo frente à proteção dos bens jurídicos
imposta pelo direito penal, e os critérios para a validade deste seriam métodos
de assegurar a proteção de bens indisponíveis, visto que não se pode descartar
a liberdade do sujeito, nem se pode esquecer o importante papel de controle
social que o Direito Penal exerce na sociedade moderna.
REFERÊNCIAS:
PIERANGELI, José Henrique. O consentimento do ofendido na teoria do
delito. 3 ed.
São Paulo:
2001.
MINAHIM, Maria Auxiliadora. O consentimento do ofendido em face de bens
jurídicos
indisponíveis.
In: Revista de Ciências Jurídicas, Maringá, n. 1, v. 6, 2003, p. 218 – 223.
QUEIROZ, Paulo. Curso de Direito Penal. Parte geral, v.1, 8ª ed. Editora Juspodivm,
2012, p 348-350.
PORTUGAL, Daniela Carvalho. O Direito Penal dos mil perdões: Sobre os
limites da exclusão da tipicidade penal pela via da ampliação do âmbito de
responsabilidade da vítima. 2014. F 131. Tese de doutorado em Direito
Público. Faculdade de Direito UFBA. Salvador. P 58-62.
SCHUNEMANN, Bernd. O Direito Penal é a ultima ratio de
proteção dos bens jurídicos. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São
Paulo: 2005, p 33-37.
LUCA, Heloisa Meroto de. O consentimento do ofendido à luz da teoria da imputação objetiva. In
Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2005, p 739-765.
CANFÃO, Olívio Albino. Requisitos e limites de validade do consentimento. Revista Eletrônica Unifacs, 2013.
Disponível em <http://www.revistas.unifacs.br/index.php/redu/article/view/2689>.
Consultado em 5 de abril de 2014.
MACHADO, Leonardo Marcondes. Consentimento do ofendido pode ser causa de
diminuição de pena. 2008. Disponível em
<http://www.conjur.com.br/2008-jul-13/consentimento_ofendido_causar_diminuicao_pena>.
Consultado em 09 de abril de 2014.
JAKOBS, Günther. A imputação objetiva no direito penal. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2000. 94p.
Texto interessante. Muitos acreditam que nossa vontade está limitada até o passo em que não interfira na liberdade do outro, entretanto, esta noção não é determinante visto que a vontade está limitada de acordo à doutrina jurídica que rege nossa vida em sociedade.
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