quinta-feira, 10 de abril de 2014

Vontade tem limites?





http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2014/04/jovem-nega-estupro-e-policia-vai-apurar-divulgacao-de-fotos-de-sexo.html


Por Lorenna Borges e Luiza Faria


Na última sexta feira, 04 de abril, foi difundido em vários sites de informação o caso de uma estudante de 19 anos que manteve relações sexuais com cinco homens, e teve as fotos do ato compartilhadas no WhatsApp e na internet. Ao tomar conhecimento do caso, a polícia civil de São Paulo apurava a possibilidade de estupro. No entanto, ao ser contatada, a jovem negou o crime e afirmou: “Foi consentido sim”.

A liberdade é um valor jurídico de extrema relevância social, sendo assegurado em quase todas as Constituições pós Revolução Francesa, inclusive a nossa. Na contemporaneidade, a globalização deu uma ênfase ainda maior às liberdades individuais e a autonomia do indivíduo frente aos institutos tradicionais. Segundo Maria Auxiliadora Minahim (2003, p.218), a ênfase na autonomia em detrimento da organização social que legitima a existência do direito penal e da qual surgem os bens que devem ser por ele protegidos, gera importantes tensões. Essas tensões se justificam pelo fato de que, no direito penal, é muito difícil harmonizar a contradição entre a proteção dos bens jurídicos indisponíveis – dentre os mais importantes, vida e saúde - e a crescente liberdade da ação individual.  Essa autonomia do individuo é o principal fundamento para a construção do conceito de consentimento, que gira em torno da idéia de ‘dispor’ do bem jurídico protegido pela esfera penal.

A palavra consentimento vem do latim consentire e, no seu sentido originário exprime a concordância entre as partes ou uniformidade de opinião (PIERANGELI, 2001). O código penal brasileiro em sua parte geral não versa sobre o consentimento do ofendido, porém, é fundamental compreender o teor da sua importância para interpretação do ordenamento jurídico penal.

Para Jakobs, o consentimento pode funcionar como excludente de tipicidade ou excludente de ilicitude. O crime de estupro, por exemplo, descrito no Art. 213 do CP tem como integrante do tipo o dissenso da vítima - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça – sendo assim, o consentimento funciona como excludente da tipicidade do caso concreto. Já nos casos em que o dissenso da vítima não é elemento integrante do tipo o consentimento torna a conduta lícita. Tomamos como por exemplo a ação de “fazer tatuagem”, que enquadraria o tatuador no Art 192 do Código Penal - Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem. – No entanto, o consentimento do tatuado afasta a ilicitude da conduta. 

Para Schünemann, não se deve proteger o bem jurídico contra a vontade do titular uma vez que, assim procedendo, viola-se sua liberdade de ação. Porém, o consentimento do ofendido deve ser avaliado e interpretado individualmente a partir de cada caso concreto. Além disso, em busca da segurança jurídica, a doutrina majoritária estabeleceu critérios para a validade do consentimento.

É necessário a priori que o ofendido, no momento de concordância, tenha capacidade jurídica para consentir. Isto significa que o mesmo deverá ter condições de compreender o significado e as conseqüências do seu ato. Em regra, o critério seguido é o da maioridade, ou seja, o indivíduo que possui 18 anos e tem pleno desenvolvimento mental, tem também a capacidade para consentir. Os relativamente ou absolutamente incapazes também podem exercer o consentimento através de seu representante legal. (CANFÃO, 2013)

Outro critério para validade do consentimento é a disponibilidade do bem jurídico. Pierangeli (2001) entende por bem jurídico penal aquele cuja lesão ou ameaça é cominada uma sanção. Para fazer uso do consentimento, é necessário que o bem jurídico seja disponível e próprio. Neste caso, a exclusão da tipicidade só será possível se o único titular do bem jurídico penal protegido for aquele que aquiesce e pode dispor dele livremente. (CANFÃO, 2013)

Vale ressaltar que existem bens majoritariamente considerados como indisponíveis, como a vida, por exemplo. Porém, para Paulo Queiroz (2012, p. 348- 349) não existem bens jurídicos indisponíveis de forma absoluta, pois, a seu ver, absoluto nenhum direito é. O que existem são então, graus de disponibilidade, considerando que até a própria vida seria passível de relativização, a depender do contexto. Assim, seria perfeitamente válido o consentimento para a eutanásia, destacando ainda que no Brasil, em alguns casos excepcionais, já há a possibilidade de supressão da vida, como no direito ao aborto no caso de gravidez resultante de estupro (CP, art 128, I e II).

O momento do consentimento também é um dos critérios para sua validação. A manifestação de vontade deve acontecer sempre antes ou durante a prática da conduta. Se posterior, não tem força de afastar a tipicidade ou a ilicitude do fato. A necessidade do consentimento anterior ou no momento da prática refere-se a renúncia à proteção penal do bem jurídico, causando, por conseqüência, a desvalorização jurídica da conduta. Porém, para Albino Canfão (2013 p. 16), ainda caberia ressaltar “que apesar desse entendimento, é admissível o consentimento posterior, ou seja, após a prática do ilícito penal. Ainda que tal manifestação de vontade não possa desvalorizar a conduta, pode impedir ação penal quando esta depende de iniciativa da vitima”.

Ademais, para a validade do consentimento é necessário também que a vontade do ofendido seja produzida e manifestada sem vícios, ou seja, que o titular do bem tenha manifestado sua vontade livremente, sem nenhuma influencia de erro, fraude ou coação. O erro ocorre quando o indivíduo equivoca-se sobre as circunstâncias ou elementos do fato, conhecendo-o de forma não correspondente à realidade, declarando uma vontade diferente da que teria caso a conhecesse. A fraude ocorre quando um terceiro emprega, intencionalmente, artifício a fim de deturpar o conhecimento do consenciente sobre os elementos ou as circunstâncias do fato, fazendo com que ele conceda um consentimento que não existiria caso conhecesse a realidade. Já no uso de coação, o indivíduo tem pleno conhecimento dos elementos e das circunstâncias fáticas, porém o consentimento é cedido mediante violência física ou moral, exercida pelo consentido ou por terceiro (DE LUCA, 2005).

Como critério limitador de validade, os bons costumes, regulam situações em que o consentimento, apesar de válido, não torna a conduta justificada. É fundamental que haja respeito à ordem pública e aos bons costumes, caso contrário estaria concorrendo para sua incriminação, isto é, não afasta a tipicidade e do consentimento que retira a ilicitude, sendo inarredável um juízo valorativo acerca destas circunstâncias. Exemplificando o caso do “campeonato de lançamento de anões”, no qual anões, vestindo roupas de proteção, eram arremessados em direção a um tapete acolchoado, vencendo aquele que conseguia alcançar a maior distância. O caso foi considerado uma violação à dignidade humana, mesmo com a argumentação dos anões, que alegavam precisar do trabalho para sua sobrevivência. Desse modo, a contrariedade do fato consentido aos bons costumes invalida a exclusão da tipicidade do crime.

O consentimento funcionaria então, como um meio de balancear a autonomia do indivíduo frente à proteção dos bens jurídicos imposta pelo direito penal, e os critérios para a validade deste seriam métodos de assegurar a proteção de bens indisponíveis, visto que não se pode descartar a liberdade do sujeito, nem se pode esquecer o importante papel de controle social que o Direito Penal exerce na sociedade moderna.


                    
REFERÊNCIAS:

PIERANGELI, José Henrique. O consentimento do ofendido na teoria do delito. 3 ed.
São Paulo:  2001.

MINAHIM, Maria Auxiliadora. O consentimento do ofendido em face de bens jurídicos
indisponíveis. In: Revista de Ciências Jurídicas, Maringá, n. 1, v. 6, 2003, p. 218 – 223.

QUEIROZ, Paulo. Curso de Direito Penal. Parte geral, v.1, 8ª ed. Editora Juspodivm, 2012, p 348-350.

PORTUGAL, Daniela Carvalho. O Direito Penal dos mil perdões: Sobre os limites da exclusão da tipicidade penal pela via da ampliação do âmbito de responsabilidade da vítima. 2014. F 131. Tese de doutorado em Direito Público. Faculdade de Direito UFBA. Salvador. P 58-62.

SCHUNEMANN, Bernd. O Direito Penal é a ultima ratio de proteção dos bens jurídicos. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo: 2005, p 33-37.

LUCA, Heloisa Meroto de. O consentimento do ofendido à luz da teoria da imputação objetiva. In Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2005,  p 739-765.

CANFÃO, Olívio Albino. Requisitos e limites de validade do consentimento.  Revista Eletrônica Unifacs, 2013. Disponível em                            <http://www.revistas.unifacs.br/index.php/redu/article/view/2689>. Consultado em 5 de abril de 2014.

MACHADO, Leonardo Marcondes. Consentimento do ofendido pode ser causa de diminuição de pena. 2008. Disponível em <http://www.conjur.com.br/2008-jul-13/consentimento_ofendido_causar_diminuicao_pena>. Consultado em 09 de abril de 2014.

JAKOBS, Günther. A imputação objetiva no direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. 94p.

Um comentário:

  1. Texto interessante. Muitos acreditam que nossa vontade está limitada até o passo em que não interfira na liberdade do outro, entretanto, esta noção não é determinante visto que a vontade está limitada de acordo à doutrina jurídica que rege nossa vida em sociedade.

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