Por Fernanda Mônaco*
e Tatiana Teixeira**
A pesquisa realizada entre maio e junho de 2013 pelo
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), divulgada em 27 de março,
causou grande frisson na sociedade. Trata-se de um órgão que tem por objetivo
dar suporte técnico e institucional às ações governamentais na elaboração e
modificação de políticas públicas; neste referido caso, a pesquisa foi sobre
“Tolerância social à violência contra as mulheres”. Diversas são as questões
abordadas na pesquisa, mas o que tem chamado mais atenção foi o fato de ter
sido divulgado inicialmente que 58% da população entrevistada concordam, total
ou parcialmente, com a afirmação que diz que “se as mulheres soubessem se
comportar, haveria menos estupros”; além disso, 65,1% concordaram também com a
sentença de que “mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser
atacadas” (IPEA, 2014).
Entretanto, no dia 4 de abril, o IPEA divulgou uma nota
afirmando que o dado fornecido pela pesquisa (referente justamente à afirmativa
que mais gerou protestos) estava errado. São, na
verdade, 26% dos brasileiros, e não 65%, os que concordam com a afirmação de
que mulheres com roupas curtas merecem ser atacadas (IPEA, 2014). Diante desse
posicionamento, vale pensar se houve realmente esse “equívoco” ou se o real
objetivo do Instituto foi tentar amenizar as diversas manifestações públicas
que surgiram, tanto acreditando que #nenhumamulhermereceserestuprada quanto que
#mulhermereceserestuprada, dúvida que apenas se agrava diante do
pedido de exoneração feito pelo diretor de Estudos e Políticas Sociais do
instituto e um dos autores do estudo, Rafael Guerreiro Osório.
Foram 3.810 pessoas entrevistadas em 212 cidades, sendo 56,7% residentes do sul ou sudeste e 29,1% das regiões
metropolitanas. Em sua maioria, foram adultos (52,4%), mulheres (66,5%),
católicos (65,7%), com ensino fundamental incompleto (41,5%) e com renda per
capita média de R$ 531,26. Todos responderam a afirmações pré-formuladas pelo
IPEA, para as quais deveriam definir se concordavam total ou parcialmente com a
afirmativa, se discordavam total ou parcialmente, ou se tinham uma posição de
neutralidade em relação ao assunto (IPEA, 2014).
Os dados obtidos na pesquisa apontam que a população
possui uma visão patriarcal da sociedade, onde o homem é o chefe da família,
onde “problemas pequenos” devem ser tratados dentro de casa e onde existem
“mulheres para casar” e “mulheres para cama”. No entanto, algumas atualizações
nessa concepção machista podem ser percebidas, como quando afirmam que o marido
não é mais dono da sua esposa e que esta não tem obrigação de satisfazê-lo
sexualmente quando não estiver com vontade. Esse material coletado gera temor quando
se sabe da influência da sociedade no Direito Penal, podendo esta legitimar
diversos tipos de violência, como o estupro, caso considerado uma conduta
adequada socialmente (IPEA, 2014).
É de relevância sinalizar que a maioria das pessoas
envolvidas na pesquisa são mulheres. Logo, há uma visão machista de mulheres a
respeito de mulheres. Estaríamos então falando sobre uma possível rivalidade
que existe entre as mulheres? Aquela velha discussão de que mulheres se vestem
para as mulheres estaria relacionada ao resultado da pesquisa. As mulheres
querem se vestir bem diante de possíveis rivais (do trabalho ou da vida
amorosa), querem exibir suas conquistas (materiais e pessoais) para mostrarem
para as outras mulheres que são melhores que estas; às vezes são a raiva e a
inveja, de um corpo escultural ou de uma vida de conquistas, que embasam esse
tipo de visão machista ou que as motivam a entrar nessa disputa. Esta ocorre
também com o sexo oposto. A luta travada pelas mulheres para mostrar que não
são frágeis e inferiores também pode justificar essa necessidade de se mostrar
melhor que “essas mulheres que merecem ser estupradas”; ainda há rancor entre
as mulheres e vontade de mostrar para o mundo que “mulheres são muito mais que
um corpo bonito”.
Até os anos de 1970, o marido que assassinasse a sua
esposa poderia ser inocentado pela tese da “legítima defesa da honra”; até
2009, o estupro era tipificado como crime de ação privada contra os costumes e
a moral. Com a Lei nº 12.015/2009, o estupro passou a ser crime contra a
dignidade da pessoa humana e a liberdade sexual (Cerqueira & Coelho, 2014).
Percebe-se então que as mudanças ocorridas na lei decorrem de mudanças
ocorridas na sociedade.
Dá-se o nome de princípio da adequação social ao princípio
interpretativo que possibilita essa aproximação. Fazendo uso dele, entende-se
que não se deve punir uma conduta materialmente irrelevante e considerada
socialmente adequada, sendo possível, portanto, subverter condutas consideradas
criminosas não pela prática reiterada, mas por sua aceitação coletiva. A
adequação social possui uma dupla função: restringir a abrangência do tipo
penal e orientar o legislador no momento de decidir as condutas que deseja
proibir e as que se deve retirar do ordenamento jurídico (Bitencourt, p. 57;
Greco, p.59-60). Tais funções estão embasadas no princípio da intervenção
mínima do Direito Penal, segundo o qual este só deve tutelar os bens mais
importantes e necessários da vida em sociedade, quando os outros ramos do
Direito se mostrarem incapazes. A partir deles, o legislador deve perceber
quando uma conduta deixa de ser relevante socialmente e retirá-la do
ordenamento jurídico (Greco, p.51).
Para Greco (2014, p.51), à luz do Princípio da Adequação
Social, o jogo do bicho, por exemplo, não seria mais uma contravenção, no
entanto, a pirataria continuaria sendo crime, apesar de certa aceitação social,
por assim ter sido definido pela Súmula nº 502 do STJ. Dessa forma, pode-se
perceber que geralmente o princípio da adequação social não tem realmente o
poder de revogar tipos incriminadores por si só, não sendo aconselhável a sua
aplicação exclusiva, com uso de critérios de interpretação usuais, pois geram
maior segurança. Essa insegurança é decorrente do fato de não se ter uma
definição do que deve ou não permanecer no ordenamento, deixando o legislador
mais livre sobre sua interpretação (Bittencourt, p. 59).
O temor então é causado por a vítima do estupro ser
considerada pela sociedade como uma corresponsável pela agressão sofrida.
Depreende-se, aqui, o princípio da autorresponsabilidade, para o qual é
possível afastar o direito penal em situações que a vítima possuía meios para
sua autoproteção ou que ao menos se
comportou de modo negligente no amparo de seus interesses. Nessa última
hipótese, encaixa-se a ideia de que, por se comportar de maneira inadequada,
usando vestimentas inapropriadas (curtas e justas), a mulher está exposta ao estupro,
sendo este, portanto, um risco consentido (Portugal,
2014; Schunemann, 2013).
Esse assunto encontra embasamento teórico em Schünemann, que entende que, por a
vítima ser portadora do bem jurídico, podendo dispor dele livremente, o
consentimento dela justifica a exclusão da "punibilidade do
agressor". Há, entretanto, casos em que o acontecimento tipificado ocorre
devido a uma interação autor-vítima, devendo ele ser resolvido a partir da
vitimodogmática. De acordo com esta proposta de interpretação, o delito é
originado a partir do comportamento da vítima, que, ao agir de maneira
negligente ou provocadora, torna-se responsável pelas consequências do seu ato
(princípio da autorresponsabilidade) e acaba por renunciar a proteção dos seus
interesses e por influenciar na concretização de um crime. Assim sendo, é ela
(e, não, o autor) quem deve ser desmotivada a agir de tal maneira (Portugal, 2014; Schunemann, 2013).
Para Schünemann, a possibilidade de a vítima ser
desmotivada é mais eficaz com a retirada da tutela jurídica do seu bem. Isto é,
o Estado não deverá mais tipificar as condutas originadas por causa da ação da vítima,
assim como não terá nenhum tipo de obrigação de proteção desta. Mais complexo, entretanto, é quando
esse tipo de comportamento ocorre pelo descuido da vítima e o terceiro se
aproveita da condição do indivíduo. São os casos dos jogos de azar, impulsos
sexuais e uso de substâncias psicoativas. De acordo com a vitimodogmática, até
mesmo nesses casos, por a vítima ter descumprido o seu dever de autoproteção, o
agente não será punido, a menos que a sua conduta gere riscos para outras
pessoas (Portugal, 2014; Schunemann,
2013).
Dessa maneira, à luz dos princípios da adequação social e
da autorresponsabilidade, por a vítima do estupro ser considerada responsável
pela agressão sofrida, ela pode não ser merecedora do dever estatal de tutela.
E, ainda pior, se levado ao extremo as ideias de Schünemann, por grande parte
da sociedade pensar dessa maneira, o estupro pode vir a não ser mais
considerado crime, não podendo, portanto, o agressor, no caso mostrado pela
pesquisa, ser punido criminalmente; talvez tenha sido inclusive esse o motivo
da retratação do IPEA. Então, a partir dessa visão, não caberia mais ao Estado
a tutela do bem jurídico – a vítima não é mais um sujeito destinatário de
proteção. É responsabilidade dela, portanto, se proteger. Ficam, então, as seguintes
questões: pode o Estado impor ao indivíduo uma obrigação de cooperação nessa
tutela? Ou cabe ao direito tutelar os bens jurídicos e o sujeito lesionado?
*Aluna do 2º semestre de
Direito, da Faculdade Baiana de Direito, contato: fernanda.monaco@hotmail.com.
** Aluna do 2º semestre
de Direito, da Faculdade Baiana de Direito, contato: ttcosta02@gmail.com.
Referências:
Bitencourt, C. Tratado de
Direito Penal: parte geral 1. 20ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
Cerqueira, D. &
Coelho, D. Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da saúde (versão
preliminar). 2014. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/140327_notatecnicadiest11.pdf. Acesso em: 31 abril 2014.
Greco, R. Curso de
Direito Penal: parte geral. vol. 1. 16ª ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2014.
IPEA. Tolerância social à
violência contra as mulheres. 2014. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/SIPS/140327_sips_violencia_mulheres.pdf. Acesso em: 31 abril 2014.
Matoso, Filipe. Para
58,5%, comportamento feminino influencia estupros, diz pesquisa. 2014.
Disponível em:http://g1.globo.com/brasil/noticia/2014/03/para-585-comportamento-feminino-influencia-estupros-diz-pesquisa.html. Acesso em: 31 abril 2014.
Portugal, D. C. O direito
penal dos mil perdões: sobre os limites da exclusão da tipicidade penal pela
via da ampliação do âmbito de responsabilidade da vítima. 2014. 143 f. Tese (Doutorado em
Direito Público) – Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014.
SCHUNEMANN, Bernd. A
posição da vítima no sistema da justiça penal: um modelo em três colunas. In:
Estudos de direito penal, direito processual penal e filosofia do direito. Luís
Greco (Coordenador). Madri/Barcelona/Buenos Aires/São Paulo: Marcial Pons,
2013.
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